segunda-feira, 9 de julho de 2007

Texto premiado!

Menção Honrosa do Concurso Latitude 60 no âmbito do ano polar internacional
Autora: Ana Manuelito Santos

A supremacia do poder do Homem

Acordo afagado pelo frio. Entranha-se nos ossos, percorrendo todo o meu corpo. Há vezes que não sinto os dedos dos pés e das mãos, nem a ponta do nariz. A vida aqui é outra, a existência também. O vento é frígido, as cores permanecem na linha branca da neve envolvente, os cheiros são brandos como o nascer de mais um dia. Não sei que dia da semana é. Aqui, na Antárctida, dou mais importância a outras coisas que mereçam a minha apreensão. Saio da cama e dou os bons dias à equipa que trabalha arduamente durante estes meses. É duro estar longe da família, dos amigos e do conforto da nossa casa. Mas, por outro lado, temos o aconchego desta área esquecida do Planeta, que tem mais vida e mais importância que muitas outras. O homem não compreende a beleza da Natureza, o magnífico que é acordar ao lado de um pinguim, o fantástico que é viver junto dos seres vivos mais recônditos do nosso lugar chamado Terra. Os hábitos também mudaram – demoro menos tempo a escolher a roupa para o dia porque aqui ninguém está preocupado se as calças azuis ficam bem com a camisola vermelha ou com o casaco amarelo. O importante mesmo é não esquecer das luvas, do gorro, do casaco de penas e do cachecol. Já na sala de refeições, como qualquer coisa para enganar o estômago ao som da boa música portuguesa que desperta a saudade do nosso país. Saio minutos depois, já equipado para lutar contra os graus negativos, ao mesmo tempo que penso como vou desfrutar desta manhã que tenho à minha conta. O dia está perfeito, o sol brilha com intensidade e parece estar menos frio que ontem. Acabo por sair sozinho, desafiar esta zona, procurar o silêncio que me faz bem ao espírito. Gosto de andar sozinho pela neve, observar com todo o tempo do mundo a mudança que há neste ar. O poder da Antárctida é muito vasto e pode ser empregue para equilibrar a sustentabilidade do nosso planeta, mudando a organização aparentemente estável dos hábitos mundanos. Passo horas de roda da minha máquina fotográfica – é um dos milagres da tecnologia. Estas imagens serão a maneira de me recordar no futuro pelas causas que lutei no passado. Os animais que aqui vivem são óptimos modelos, mais bonitos e inteligentes que os próprios humanos. Quem é que disse que os animais também não pensam qual é o melhor ângulo para fotografar? Vou andando mais uns metros, mais outros e mais outros. As horas passam com rapidez, é sempre assim quando nos sentimos leves no meio de tanta pureza e de tanto sossego. A paisagem pouco muda, centra-se sempre na vista longínqua pintada de branco e o sol continua a brilhar na imensa neve que cobre o chão. Apanho do chão um pedaço de neve que me escorrega pelas luvas azuis, pensando que a conseguia suster e levá-la comigo para casa. Por agora é tempo de mudar de atitude, deixar os animais que me rodeiam, os blocos de neve, e regressar ao ponto zero. É bom o tempo que gastamos connosco, ajuda-nos a conhecer melhor a atmosfera em que estamos inseridos, e no meu caso, digamos que não escolheria mais nenhuma neste momento, por mais fria que seja, por mais distante que esteja da vida social. O mundo é feito de momentos, de lugares, de essências e do que mais desejarmos e o meu desejo agora é ganhar a oportunidade de mostrar que sou capaz de fazer o meu trabalho e que vou conseguir, de alguma forma, expor a grandeza eloquente deste continente. Volto para a base num passo lento, como se não quisesse sair desta sensação natural que os ventos da Antárctida me enrolam. A tarde é passada dentro do escritório fazendo os relatórios das últimas conclusões a que o meu grupo chegou. O trabalho aqui é intenso, temos de dar o melhor de nós, mesmo naqueles dias mais complicados. A probabilidade de tudo correr bem tem de ser cem por cento, sem margem de erro possível. Ao início era difícil gerir o ritmo de trabalho, os hábitos e os costumes que fomos obrigados a implementar por nós próprios, pois ninguém mais está aqui para nos auxiliar. Se ao menos o resto do mundo vivesse as mesmas sensações que nós, sentisse o domínio que a Natureza nos exerce por pequenas coisas que nos marcam e nos prendem a atenção, mas mais importante que isso – a necessidade de a respeitar – que se sobrepõe ao restante. Conseguimos aproveitar bem estes últimos meses. Agora que vai começar o Inverno rigoroso, temos de partir pois o continente pode chegar aos -80ºC. As malas estão quase feitas – levo uma grande experiência de vida, não só a nível profissional como a nível psicológico. Este lugar foi a minha casa durante todo este tempo, vou sentir saudades das suas paredes e da sua atmosfera. Se pensássemos que o nosso planeta é a nossa verdadeira casa, este estaria muito mais preservado. Limpávamo-lo, arrumávamo-lo e cuidávamo-lo, pois tínhamos depositado a nossa vida nele. Mas está como o vemos, repleto de consequências dos nossos actos impensados. A minha equipa leva inúmeras informações fundamentais para difundir pelos diversos países, inquietos com a questão do aquecimento global, apesar de todos saberem que existe a necessidade de se preservar este lugar, como forma de equilibrar o clima do planeta. Toda a água doce incluída na Antárctida é aproximadamente 90% do total da água existente na crosta terrestre, e parece que para muitos estes valores não têm nada de extraordinário. Pior será se essa mesma água invadir os vários continentes e a qualidade de vida da população da nossa aldeia global sofrer consequências irreparáveis. Outros graves problemas suscitam a minha preocupação, como é o caso da diminuição de alimento para estas espécies, tão vulneráveis e inocentes; o aquecimento que provoca a quebra do gelo costeiro, que por sua vez forma grandes icebergs, tudo aquiloo que vai gerar um desequilíbrio cada vez mais acentuado neste ecossistema. Estes reflexos ambientais, observados na Antárctida, não ganham grande importância no quotidiano da população mundial, e vamos sentido cada vez mais esses mesmos impactos. Importa que sejamos positivos e pensemos que somos capazes de dar relevo à insuficiência de medidas para solucionar os problemas ambientais que a nossa verdadeira casa acarreta. Não vou salvar o mundo, não tenho poderes para isso, mas ninguém me impede as sucessivas tentativas de mudar opiniões e hábitos para que o mundo gire de outra forma. Acredito no poder da esperança mas acredito muito mais no poder do Homem.